| 26/07/2008 06h23min
Não havia nada mais importante naquele dia. Usain Bolt, 21 anos, nascido na Jamaica de Bob Marley, poderia dar socos no ar, gritar, falar de sua vida e da fascinante tradição jamaicana de produzir alguns dos atletas mais rápidos do mundo. Bolt fez tudo isso, mas só depois de uma típica atitude de precaução. Ao entrar na sala para a entrevista, ele deve ter percebido alguns sinais de desconfiança e tomou a dianteira. Antes mesmo que alguém perguntasse sobre o assunto, Bolt tratou de deixar claro que o tempo de 9s72 para os 100m no Grand Prix de Nova York era honesto - ou seja, não tinha nada a ver com estimulantes. Tempos estranhos, como disse certa vez o então treinador da Seleção Luiz Felipe Scolari, em que o profissional ou o cidadão comum precisa provar que é honesto. Bolt e milhares de outros atletas terão de fazer isso mais uma vez a partir do próximo dia 8, quando os chineses derem a largada para os Jogos Olímpicos. O esporte de alto rendimento está tão manchado por trapaças que
nunca
mais será possível dispensar os testes antidoping rigorosos realizados por um batalhão de especialistas. É quase uma Olimpíada paralela.
A ruína ética percebida sutilmente pelo jovem jamaicano chegou a tal ponto que os honestos começam a ficar envergonhados. Foi o que confessou há bem pouco tempo o texano Michael Duane Johnson, 40 anos, recordista mundial dos 200m, 400m e revezamento 4x400m, cinco medalhas de ouro olímpicas e nove títulos mundiais de atletismo. O que fez Johnson? Diante dos casos comprovados de doping em atletas de seu país, ele decidiu devolver o ouro do revezamento 4x400m dos Jogos de Sydney, em 2000. "Ela é suja", desabafou, ao citar o envolvimento de seus companheiros de equipe em esquemas de doping. "Sinto-me enganado e frustrado", disse, ao descobrir que todos seus companheiros de equipe estavam sendo processados ou presos. Como não poderia apagar tudo aquilo da história, Johnson ao menos reagiu. Foi digno.
É um drama que tem crescido muito nos
últimos anos,
especialmente nos Estados Unidos, terra de alguns dos maiores atletas da história e de uma quase cruel luta por sucesso a qualquer custo. Atletas como os da foto, por exemplo, bem-sucedidos, ricos, nos tempos em que todos eram felizes. Marion Jones, três medalhas de ouro e duas de bronze em Sydney, estava então realizada ao anunciar a gravidez ao lado do marido Tim Montgomery, um dos recordistas dos 100m. Hoje, Marion ocupa uma cela da prisão de Fort Worth, Texas, condenada a seis meses, mais 400 horas de trabalho comunitário, por usar estimulantes e mentir no tribunal. Perdeu os patrocínios, a fortuna, as medalhas, foi separada dos filhos, teve seu nome riscado dos compêndios olímpicos. Está atualmente lutando por indulto. Montgomery, o marido, campeão olímpico, aposentado em 2005 ao ser suspenso por doping, está condenado a 46 meses de prisão por ter participado de um esquema de fraude com cheques falsos, no valor de US$ 1,7 milhão. Não chorou ao ouvir a sentença, como fez Marion, mas baixou as cabeça e
escutou em silêncio a reprimenda do juiz que o condenou em White Plains, Nova York. "Pense nos filhos na próxima vez e saiba dizer não", disse o juiz, em referência aos quatro filhos do ex-atleta, que também enfrenta processo por tráfico de drogas em Virgínia.
Não é um drama exclusivo dos EUA, claro, mas é lá que estão as maiores estrelas do esporte - cada um deles com prestígio suficiente para provocar um escândalo diante de um doping ou de uma simples suspeita. Quem ainda não viu em algum momento as imagens da norte-americana Florence Griffith-Joyner e seu corpo malhado nos Jogos de Seul/1988? Florence arrasou. Ganhou três ouros nos 100m e 200m, no revezamento 4x100m, bateu dois recordes mundiais. Um ano depois, para surpresa geral, ela anunciou a retirada das pistas. Dez anos mais tarde, aos 38 de idade, morreu vítima de um caso raro de epilepsia. Alguns especialistas relacionam sua morte ao consumo de substâncias proibidas. Seu próprio corpo já levantava
suspeitas.
A situação chegou a tal
ponto que autoridades americanas decidiram estabelecer uma cruzada para detectar os desonestos e, assim, dar uma retocada na imagem. A nova estratégia não perdoa ninguém, nem mesmo os ídolos do beisebol, um esporte que faz parte da gênese do orgulho americano. Mark McGwire, um dos grandes rebatedores, teve o ingresso negado no Salão da Fama por ter admitido o uso de estimulantes na carreira. É a humilhação suprema para um ídolo assim. Outro, Barry Bonds, recordista em home runs (a principal jogada no beisebol), do Giants, está em situação pior ainda. Na última temporada, seu teste antidoping revelou a presença de anfetamina. A situação já seria difícil, mas Bonds conseguiu piorar ao mentir nos depoimentos. Como punição, virou suspeito e está sendo submetido a testes periódicos. Será assim por um período de seis meses.
Eduardo De Rose, o especialista que há muitos anos coordena a guerra antidoping, costuma dizer que este é um confronto permanente. A cada avanço das equipes de controle para
denunciar
os Bonds e Montgomerys de todos os dias, corresponde uma reação contrária. Sempre algum laboratório está tentando descobrir um estimulante que passe incólume pelos rigorosos testes dos Jogos. São avanços e recuos, vitórias e derrotas, sem tréguas, nem data para terminar. Tudo para que alguém como Usain Bolt, no seu momento de glória, não se sinta obrigado a provar que é honesto - e tenha tempo para curtir os merecidos aplausos.
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