| 14/05/2008 21h31min
O carvão está posto na churrasqueira e os jogadores do Passo Fundo aguardam o assador com a carne. Então Atílio Genaro Ancheta chega pouco depois do meio-dia do último 17 de março, uma segunda-feira. Traz oito quilos de ripa de chuleta, costela, salsichão e uma tristeza incomum.
Há 45 dias técnico do time, o encontro está marcado desde a semana anterior. Queria sacudir o grupo e fazê-lo reagir ao péssimo começo na Segunda Divisão do Campeonato Gaúcho.
À beira do fogo, porém, virando a carne, o assador esconde seu drama e evita transformar o churrasco num velório. Apesar do cheiro do assado e do tira-gosto, o que mais impregna o ar é a derrota de 6 a 2 do dia anterior, no domingo, diante do Glória, de Vacaria, nas barbas da torcida do Vermelhão da Serra, em Passo Fundo.
Culpando-se pela situação, os jogadores cochicham os mesmos boatos que correm pela cidade de 188 mil habitantes, no norte do Estado: a cabeça do técnico vai rolar.
— Não vamos aceitar esta onda — adianta-se um
deles.
— Este problema é meu — desconversa o treinador.
Ancheta precisa avisar seu filho, Pietro, 17 anos, que o acompanhou a Passo Fundo pensando em iniciar-se entre profissionais - e o chama a um canto:
— Olha, filho, estou demitido... Não fala para o pessoal.
Pietro tenta esconder o desconforto, embora nada seja mais revelador que o esforço em desviar os olhos com sinais de choro. Até o sorriso fácil de dentes com aparelho desaparece. Mesmo para esses jogadores, a maioria garotos entre os 16 e 22 anos, de salário irrisório e com dependência voraz do refeitório do clube, nunca foi tão sem graça destrinchar ripas de chuleta.
O constrangimento do grupo comove o zagueirão, melhor da posição na Copa de 70 pela seleção uruguaia, a Celeste, campeão mundial de clubes pelo Nacional, de Montevidéu, e capitão do Grêmio entre 1971 e 1980. Agora, na primeira oportunidade da carreira como técnico, o ex-craque consagrado
encara seus jogadores desolados com os rumores de sua
própria demissão.
Ancheta prepara sua caipirinha, não suportaria o refrigerante dos garotos, e tenta enfrentar o momento recorrendo a um outro talento seu: a de cantor de boleros.
Depois que parou de jogar, em 1982, Ancheta fixou moradia em Porto Alegre. Metia-se a cantar em reuniões de amigos e acabou convencido de que tinha boa voz.
Gravou sua primeira obra, o long play com o sugestivo título Besame Mucho com Frenesi.
Ancheta chegou a participar do programa de TV Clube do Bolinha, em São Paulo. Fez sucesso, mas não tinha repertório e voltou à Capital. Seguiu então apresentando-se em bailes de clubes e festas privadas.
Desde 1991, animava platéias de casais sentimentais com boleros e canções dor-de-cotovelo (foto menor) levados em bom portunhol. Cobrava 10 salários mínimos por show. Quando tirava Recuerdos de Ipacaraí, Solamente una Vez, Perfídia e La Barca, nenhum casal permanecia sentado.
"Sentimental eu sou, eu sou demais", diz o refrão de sua canção
preferida, sucesso imortalizado por Altemar Dutra nos anos 60.
Pois agora agora, aos 59 anos, esguio em 1m87cm de altura e 89 quilos, com os grisalhos recém subindo pelas têmporas, considera-se habilitado à arte de segurar e soltar emoções. Mas nem toda a experiência de palco o impede de ir às lágrimas diante da cena dos garotos do time do Passo Fundo.
Em silêncio, o churrasco acaba no início da tarde da segunda-feira. Os jogadores e Pietro vão para o Vermelhão da Serra.
E o técnico começa as primeiras das 24 horas de embaraço a que seria submetido, até o desligamento final do Esporte Clube Passo Fundo, na terça-feira.
A dispensa, na verdade, não está sacramentada. Existe apenas a informação de um dirigente colhida meia hora antes do churrasco: a diretoria vai colocá-lo na rua ao final da tarde. Portanto, tem de matar o tempo e aguardar a sentença.
Em vez do treino, Ancheta vai tratar de seus fantasmas no
apartamento 112 do hotel Germânia, na Vila Annes, sua casa
desde que chegou a Passo Fundo no início de fevereiro.
Encerrado no hotel, nem pensa em curtir a soneca de outros dias - apesar da noite em claro após o fracasso de domingo.
Liga para a mulher, Nádia, que permanece na casa da família em Porto Alegre, e só então desabafa sua frustração. Partiu dela o incentivo para que o marido finalmente assumisse a carreira de treinador e ganhasse dinheiro - o que ele só protelava, porque estava envolvido com os bailes.
Ao telefone, Ancheta lamenta a demissão prematura e o time fragilizado de garotos que lhe colocaram em mãos para disputar a Segunda Divisão - um campeonato para adultos.
Nádia quer saber é do filho Pietro.
— Acho que está melhor do que eu — diz.
Pietro, afinal, também está alijado da primeira tentativa de seguir a carreira como zagueiro, a posição que consagrou o pai.
Além de Pietro, 1m87cm de altura, Ancheta
obrigou-se a buscar reforços no futebol de várzea de Santo Antônio da Patrulha. Era
o que o clube podia contratar. Quatro deles assinaram por R$ 200 mensais, longe dos R$ 380 do salário mínimo na época. Eles comem e dormem na concentração, mas ganhariam mais se ficassem jogando no campeonato amador de Santo Antônio.
No hotel, à espera da decisão da diretoria, o técnico abre a página do dia 17 de março da agenda de capa azul plastificada e relata:
"Foi a minha despedida da gurizada de Passo Fundo, chorando e sentindo".
No final da tarde, a demissão oficial é comunicada. Entrincheirado no hotel, o técnico recebe a imprensa local e fala apenas o necessário. Ainda teria de enfrentar a primeira noite como um demitido.
Sem disposição para assistir à novela ou ao Big Brother, Ancheta comunica sua sorte por telefone aos outros quatro filhos e, inquieto no apartamento, volta-se para a agenda, uma espécie de diário. Com a página do dia tomada por anotações de números de telefones, avaliações de jogadores e pensamentos,
num canto ele escreve:
"Tenho muito que
ensinar, não queria perder essa chance, não queria deixar esse grupo neste momento."
Maldormido, às 9h de terça-feira Ancheta chega ao Estádio Vermelhão da Serra. Quer despedir-se dos jogadores, receber o pagamento e voltar logo para casa. Mas encontra no estádio um comitê de resistência na porta do vestiário: os jogadores estão resolvidos a implorar à direção pela permanência do técnico - que os demove da idéia na hora.
— Não, a coisa não funciona assim..., — diz o demitido.
A presença da imprensa e de curiosos encoraja uma rebelião silenciosa pelos corredores do estádio. Jogadores e comissão técnica estão contrariados e sem a mínima disposição para o treino da manhã.
Ancheta reprova a situação e sugere uma despedida formal no gramado. Só assim o grupo, com uniforme de treino, chega à beira do campo e forma uma roda. O técnico dispensado fala apenas o necessário, para registro da imprensa:
— Sei que vocês
são fortes, vão se superar...
Ninguém parece ouvir.
Alguns se desgarram da roda, tentam esconder a cara de choro. Pietro é um deles.
Como o homem do dinheiro não aparece, só resta ao demitido esperar pelos corredores do pavilhão de concreto, perto da sala da direção. De uma espiadela, Ancheta repara a desordem da concentração, um alojamento com cerca de 30 metros quadrados lotado de camas.
Fosse outro dia, ele próprio, Ancheta, o grande zagueiro da Copa de 70 no México, o campeão do mundo pelo Nacional, esticaria os lençóis, recolheria os travesseiros do chão e mandaria alguém limpar o lixo e o banheiro - como aconteceu diversas vezes durante a passagem pelo Passo Fundo.
Pietro vai para o computador da sala que é ao mesmo tempo refeitório e estar. Precisa remover seus arquivos de música e passá-lo para um pen-drive. Dos colegas do 3º ano do Segundo Grau do Instituto Cecy Leite Costa ele já se despediu na noite anterior. Sua vida está mudando. Vai se transferir para a Escola Apeles Porto Alegre e
refazer os colegas.
— Começo de
novo, tudo bem — resigna-se o garoto.
Cansado de esperar pelo pagamento, Ancheta vai ao colégio resgatar a documentação do filho e, na volta, acomoda-se na arquibancada do pavilhão do estádio.
Do alto, o técnico exonerado observa os garotos arrastando-se em treino lá embaixo. Bem diferente do seu tempo: entre os 16 e 17 anos de idade, Ancheta passou fome morando em pensão em Montevidéu, dividia um pão francês com quatro colegas e tomava chocolate em pó com água. Ainda assim, aos 21 anos defendeu o Uruguai contra Pelé, Tostão e Rivellino na Copa em que o Brasil sagrou-se tricampeão e colocou seu nome na seleção daquele Mundial.
Ancheta recebe o pagamento e pega a estrada de volta a Porto Alegre com o filho. Encerra-se assim o período de 24 horas de constrangimento desde o churrasco da segunda-feira. Ainda hoje, aguarda convite de emprego de um clube. Boleros, agora, só para ouvir em casa.
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